sábado, 15 de fevereiro de 2020

Maria Batista, identidade e imagem da resistência do povo acreano


Matriarca de Tarauacá tem a própria história confundida com a resistência do povo acreano

Truída de suor e sangue, a argamassa com a qual se ergueu a identidade e a própria cultura acreana, um pouco desta chamada acreanidade, ainda tem rosto e forma física, nome e endereço: Maria Batista Lopes, muito próxima a completar 97 anos de idade, moradora do município de Tarauacá, onde nasceu e constituiu numerosa família, mãe de 11 filhos e agora cercada de netos e bisnetos, alguns ilustres, como deputado estadual Jenilson Leite (PSB).

Sua história não é diferente de muitos descendentes de nordestinos que desembarcaram no Acre e na Amazônia para construírem, com esforço descomunal numa época em que tudo era dificuldade, a história fenomenal de um povo e de uma região.

Maria Batista Lopes é avó do deputado estadual Jenilson Leite/Foto: Reprodução

Isso tudo começa quando a demanda internacional, para garantir o esforço de guerra das nações aliadas no enfrentamento à ameaça de expansão do nazi-facismo na Europa, naquela primeira metade do século XX, exigia dos seringalistas socados nas florestas, financiados pelas casas aviadoras de Manaus e Belém, o recrutamento de nordestinos para as atividades nos seringais amazônicos. O que acontecia do outro lado do mundo aquecia a economia e a vida na frieza da selva e no coração dos seringais amazônicos.

Mas esta história começou bem antes. De 1877 a 1911, houve um aumento considerável na produção de borracha que, em condições técnicas primitivas de coleta, empregava uma mão de obra expressiva. Isso fez com que o Acre chegasse a ser o terceiro maior gerador de divisas para a União, graças à borracha, que chegou a representar 25% da pauta de todas as exportações do Brasil, à frente, inclusive, do cacau, da Bahia. A experiência daqueles tempos, que coincidia com a época da I Grande Guerra, iria se repetir nos anos 30 e 40, na II Grande Guerra.

Os nordestinos, juntamente com os sírio-libaneses e gente de outras nacionalidades, além dos povos indígenas que habitavam essas paragens, deram início à formação da identidade acreana tal qual a conhecemos hoje. “Foi um período de miscigenação de culturas, de grande opulência para os ricos e um regime e semiescravidão para os imigrantes, que não podiam cultivar produtos agrícolas, submetendo-se ao controle dos coronéis de barranco, que eram os senhores plenipotenciários (agentes investidos praticamente de todos os poderes)”, disse, ao analisar aquele período, o professor doutor em História do Acre, Eduardo Carneiro, 46 anos.


Na década de 20 do século passado, mais precisamente na confluência do Rio Tarauacá com o Rio Muru, povoado batizado de Seabra, aportou o casal de cearenses Manoel Batista de Souza e Laura Medeiros de Souza. Eram os pais de dona Maria Batista, a remanescente desta história, nossa principal personagem nesta e em muitas histórias de Tarauacá. Como outros milhares de nordestinos tangidos pelas secas que castigavam, como castigam até hoje, todo o Nordeste brasileiro, eles chegaram ao Acre em busca da sobrevivência. Na bagagem, mais esperanças do que pertences.

Instalaram-se no Seringal Atenas, cerca de três dias de subida no rio de barco a motor nos dias atuais e pelo menos oito dias a toque de varejão, pois não havia combustível tampouco motor numa região ainda muito próxima da selva original. “Naquela época, eles gastavam o dobro desse tempo porque não existiam motores e o percurso era feito no braço, com o varejão”, explicou o ex-seringueiro Raimundo Nonato dos Santos, 65 anos, taraucaense e atual morador de Cruzeiro do Sul. Quem possuía tamanho luxo de ter barco a motor era gente rica e abastada como um certo Avelino Leal, sobre o qual diziam ser o “dono” do rio Tarauacá, informa o ex-seringueiro.

A promessa aos desbravadores era de que, na Amazônia, como nas melhores lendas da literatura internacional, o dinheiro brotava das árvores – clara referência às seringueiras que forneciam o látex e a goma necessários à confecção, que enricavam inda mais quem era rico, e enchiam de esperanças quem havia fugido da fome e da seca, não obstante à promessa de que também ficariam ricos para voltar às origens. Os governos também propunham bens e vantagens materiais. Promessas que jamais se cumpriram, muito pelo contrário.


Homens e mulheres foram abandonados à própria sorte na selva. O beribéri, a malária, os animais silvestres e a melancolia dizimaram milhares deles, constituindo o que podemos chamar de hecatombe social. Dona Maria Batista Lopes, como uma espécie de heroína de carne e osso, sobreviveu a tudo isso.

Primeira de uma família de 11 filhos, nasceu no Seringal Redenção, que está localizado às margens do Rio Tarauacá. “Primeiro, para abrir os seringais, vieram dois irmãos do meu pai. Depois ele chegou, casou com minha mãe e foram morar no Seringal Atenas, propriedade comprada pelo meu avô e onde todos nós fomos criados”, conta dona Maria.

Só quem, como ela, atravessou adversidades pode falar da agudeza do sofrimento, com dificuldades até para aquisição de alimentos. “Os seringueiros que não trabalhavam direito passavam fome e alguns eram chicoteados pelos patrões”, declarou a mulher, que conheceu o lendário Pedro Biló, o comandante das chamadas “correrias”, que incluía a captura de índios para a escravidão no serviço braçal ao redor dos barracões, e as mulheres, para escravas sexuais. “No Seringal Universo, do seringalista Alto Furtado, era o local que judiavam muito com o povo. Amarravam, açoitavam e mandavam matar”, conta dona Maria, sem disfarçar a tristeza que tais lembranças lhe trazem.

Alguns anos depois, Dona Maria e o esposo vieram morar no Seringal Tamandaré, propriedade do hoje pecuarista conhecido por Rames Fernandes Eleamen, local onde teve 11 filhos, dos quais, pelo menos dois, estão deixando frutos na história e na política do Acre. Um, Francisco das Chagas Batista Lopes, o Chagas Batista, ex-vereador e ex-vice-prefeito de Tarauacá. E Nonata Batista Lopes, quem vem a ser mãe do deputado atual estadual Jensilson Leite (PSB).

“Mandamos as mulheres estudarem na cidade, o que causou descontentamento nos meninos. Quer saber, vamos vender tudo e levar todos para estudar”, disse Maria Batista.
Na cidade, a família se instalou na Rua Sansão Gomes, nas proximidades do Centro. Frágil e pequenina, aquela ex-seringueira se tornaria uma grande costureira, senão a maior de Tarauacá. “Fiz muitas roupas para madames e paletós para políticos, inclusive para o Nabor Júnior”, diz a ex-costureira, com seus olhos miúdos e memória gigantesca, referindo-se ao ex-senador e ex-governador, seu conterrâneo.

De vilarejo à cidade violenta

Para quem conheceu a Vila Seabra e o Rio das Tronqueiras, o nome original do Tarauacá no dialeto indígena, de beleza exuberante e que acometia os seus visitantes de uma inominável paz espiritual, descrita por poetas e escritores como o lendário Leandro Tocantins, que produziu, inspirado por aquelas paisagens, o romance “O Rio Comanda a Vida”, hoje se assusta com o quem vem acontecendo por ali.

Talvez, por causa de sua posição hidrográfica e por ser cortada pela BR-364, e, principalmente, pela ausência de políticas públicas, o outrora vilarejo bucólico em que se poderia dormir com portas e janelas abertas e com seus moradores conversando nas calçadas e admirando a Lua, transformou-se numa espécie de sucursal do inferno, com assassinos brutais, crimes cometidos por membros de facções nos mesmos moldes, ou bem pior do que ocorre na Capital. Essa é, hoje, uma cidade em que dona Maria Batista, nascida e criada no lugar, já não suporta viver e resigna-se à permanecer no lugar porque, na sua idade, já não tem mesmo muitas opões.

“A pacata cidade já não é mais a mesma. As organizações criminosas impuseram o terror. A violência colossal ocupa a maior parte de nosso noticiário e a população está desprotegida. Todas as esferas do poder público precisam se unir para superarem essa situação sombria”, diz o neto ilustre de dona Maria Batista, o deputado Jenilson Leite (PSB), um dos representantes no município na Assembléia Legislativa do Acre (Aleac).

Para o deputado, que também é médico, dona Maria Batista não é só a imagem de uma avó bondosa e exemplo de retidão e caráter na política. É, sobretudo, a imagem viva de tempos antigos em que viver era uma luta cotidiana contra as mais diversas vicissitudes. “Ela é uma guerreira verdadeira, uma prova de resistência do povo acreano”, definiu Jenilson Leite

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