O reverendo Jim Jones, comandante da seita Templo do Povo — Foto: Wikimedia Commons
No início dos anos 60, o reverendo Jim Jones morou em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro; no final da década seguinte, levou mais de 900 seguidores à morte na Guiana.
A notícia chegou ao Brasil há 40 anos, numa terça-feira, 21 de novembro de 1978. Três dias antes, 918 pessoas, incluindo 304 crianças e adolescentes, haviam morrido em Jonestown, assentamento agrícola erguido no coração da selva guianense por integrantes da seita americana Templo do Povo.
Entre pequenas casas de madeira, os fiéis jaziam de bruços sobre a grama, abatidos pela ingestão de refresco envenenado. O líder e fundador do grupo, Jim Jones, foi encontrado junto aos discípulos, com um ferimento de bala na cabeça. O clima tropical acelerou a decomposição dos corpos, obrigando os soldados da força-tarefa do governo local a vestirem máscaras para enfrentar o mau cheiro que impregnava o ambiente. Apenas 87 moradores da comunidade sobreviveram à tragédia, híbrido de suicídio coletivo com assassinato em massa.
A perplexidade dos brasileiros, no entanto, passava por questões anteriores ao massacre: uma década e meia antes, Jones havia morado no Brasil. Sua passagem por três capitais da região Sudeste, no auge da Guerra Fria, é parte de um quebra-cabeças cujas peças estão nos arquivos públicos do país, em antigas coleções de jornais e no acervo documental da própria seita, digitalizado pela Universidade Estadual de San Diego (na Califórnia, EUA).
A reportagem da BBC News Brasil entrou em contato com sobreviventes do grupo, mas nenhum deles quis dar entrevista. Por e-mail, Stephan Jones, único filho biológico do líder religioso, disse: "Eu me lembro apenas de pequenos fragmentos de nossa vida familiar no Brasil, e o papai não aparece em nenhum deles".
Apocalipse
No início da década de 1960, o Templo do Povo era um sucesso. Com poucos anos de existência, a congregação em Indianápolis (EUA) já aglutinava cerca de 2 mil fiéis, seduzidos por um discurso que fundia o cristianismo pentecostal aos princípios socialistas e a luta contra o racismo. Jones, que estivera em Havana nos primeiros meses de 1960, gabava-se de ter conhecido Fidel Castro e atribuía a Jesus Cristo o papel de fundador do comunismo. Ao lado da mulher, Marceline Jones, assumiu a custódia de três crianças coreanas, uma garota indígena e um bebê negro - o primeiro a ser adotado por um casal branco no Estado americano da Indiana.
A ascensão da igreja, porém, estava ameaçada pelas visões premonitórias que Jones alegava sofrer. O futuro da espécie humana e as trágicas consequências do individualismo ocidental teriam sido revelados a ele num átimo de segundo: clarões luminosos, nuvens em forma de cogumelo, explosões em Chicago, um confronto armado entre EUA e Rússia, devastação infinita.
Em 1962, ao folhear a edição de janeiro da revista Esquire, o reverendo encontrou um texto que parecia confirmar seus pesadelos. "Se você deseja estar a salvo da destruição atômica", anunciava o primeiro parágrafo, "aqui está o guia de sobrevivência mais atualizado". O artigo, intitulado Nine places to hide (Nove lugares para se esconder), enumerava e descrevia os "poucos lugares nesta terra onde a vida humana não será dizimada".
Belo Horizonte ocupava a sexta posição do ranking. Os encantos da capital mineira, segundo a Esquire, não eram de se desprezar: televisão, indústrias, laticínios, as amenidades da vida moderna e um clima agradável para americanos.
O reverendo tinha certeza: tratava-se de outro sinal divino.
Espionagem
Jim Jones desembarcou no aeroporto de Viracopos, em Campinas, no interior de São Paulo, no dia 11 de abril de 1962, acompanhado da mulher e dos filhos.
Os registros da família na Secretaria da Segurança Pública de São Paulo não eram muito esclarecedores. Aos funcionários da Delegacia de Estrangeiros, Jones informou apenas o nome, a data de nascimento, a nacionalidade americana e o local onde dormiria naquela noite - o Jaraguá, hotel de luxo no centro da capital paulista.
Na mesma semana, a família chegou a Belo Horizonte, fixando residência em Santo Antônio, bairro nobre da capital mineira. A enfermeira Rheaviana Beam, discípula do Templo, se juntou ao reverendo na primeira quinzena de julho, trazendo consigo o marido, Jack, e a filha, Joyce.
Aos olhos da vizinhança, os hábitos de Jones pareciam estranhos e misteriosos. Sempre calmo, ele não fumava nem bebia, nunca falava sobre religião e se esquivava quando interrogado sobre os motivos de sua vinda ao país. Todos os dias, às seis da manhã, saía de casa com uma pasta de couro, retornando apenas às sete da noite. Ninguém sabia o destino de suas caminhadas.
"Comecei a ficar grilado, desconfiava que fosse um espião. A única informação que consegui obter era a de que ele recebia mensalmente uma verba do governo americano, como capitão reformado da Marinha", relatou ao Jornal do Brasil o engenheiro aposentado Sebastião Carlos Rocha, em reportagem publicada em 24 de novembro de 1978.
O registro de Jim Jones ao chegar em São Paulo: ele apenas pernoitou no hotel Jaraguá (que existe até hoje) com a família — Foto: Arquivo Público de SP
No mesmo dia, Marco Aurélio Rocha, filho de Sebastião Carlos, assegurou aos repórteres do jornal O Globo que Jones recebia visitas quase diárias do Consulado Americano, que carros oficiais eram utilizados para abastecer de compras a sua residência e que um policial morrera ao investigar o caso. Em seguida, o reverendo teria abandonado a cidade.
Filantropia
Em fevereiro de 1963, Jones mudou-se para o Rio de Janeiro, instalando-se com a família num apartamento da rua Senador Vergueiro, no Flamengo, zona sul da cidade. Sua estadia na capital fluminense inspirou uma anedota que seria reprisada à exaustão nos sermões do Templo.
"Nos morros do Rio de Janeiro, eu me tornei um comunista", relatou aos discípulos em 1977. "Eu abastecia dois orfanatos, providenciava comida e mantimentos. Os brasileiros não tinham recursos para isso".
Os esforços de Jones teriam chamado a atenção de uma mulher rica e influente, jamais identificada: a esposa de um embaixador. "Ela deu em cima de mim, e nós tínhamos todas aquelas crianças para alimentar", afirmou. "Então a mulher do embaixador me ofereceu um monte de dinheiro para transar com ela, e eu aceitei".
A experiência, garantiu aos fiéis, foi difícil: "Nada é tão repulsivo quanto ir para a cama com alguém que você detesta. E eu detestava tudo o que ela representava: a arrogância, o racismo, a crueldade dos ricos. Eu vomitei logo em seguida".
Com o pagamento de US$ 5 mil, o reverendo teria financiado obras de caridade nos orfanatos. "Mas eu fiz com que aquela p*** velha me acompanhasse, para que ela conhecesse o outro lado da vida", disse. "E quando todas aquelas crianças negras puxaram seu vestido em agradecimento, ela se afastou".
Golpe
Jim Jones não foi o único cidadão de Indiana a migrar para o Brasil naqueles tempos. Dan Mitrione, chefe de polícia no município de Richmond, agente do FBI (a polícia federal dos EUA) e ex-amigo do reverendo, chegou a Belo Horizonte em 1960. Era, nas palavras do líder religioso, "um sujeito cruel, um racista perverso".
Mitrione lecionou "técnicas de contrainsurgência" em escolas policiais de todo o país. Suas aulas, na verdade, eram grandes laboratórios de tortura, abordada de forma didática e com ares de método científico. Supervisionados por ele, os alunos submetiam mendigos e presos políticos a choques elétricos, pau-de-arara e asfixia.
"Já tinha ouvido falar de suas atividades nefastas em Belo Horizonte. Estava inclinado a denunciá-lo para toda a esquerda", declarou Jones.
O agente permaneceu quase três anos na capital mineira e sua mudança para o Rio de Janeiro, em 1963, coincidiu com a de Jones. Antes de ser morto por guerrilheiros uruguaios, Mitrione ainda ministraria cursos no Rio Grande do Sul, em 1964, e Pernambuco, em 1965.
Daniel "Dan" Mitrione, do FBI, veio ao Brasil para dar aulas de tortura a agentes da ditadura militar (1964-1985) — Foto: Biblioteca Nacional/BBC
Impressionado com a escalada de violência que culminaria no golpe de 1964, Jones acabou retornando aos EUA em dezembro de 1963. "Naquela época, o Brasil parecia caminhar para uma social-democracia", avaliou. "João Goulart era progressista, mas eu sabia que alguma coisa estava prestes a acontecer, pois Jânio Quadros, uma espécie de herói popular, havia renunciado sem aviso prévio."
As conclusões do reverendo acusavam seu próprio país: "Os brasileiros tiveram que ser treinados de fora, pelos EUA, para se tornarem tão brutais. Foi algo obviamente importado".
Jonestown
Em 1965, o Templo do Povo saiu de Indiana e instalou-se no Estado da Califórnia, ampliando consideravelmente sua influência. Dez anos depois, a seita tinha três filiais e cerca de 20 mil simpatizantes, incluindo George Moscone, prefeito de San Francisco, e Rosalynn Carter, que viraria primeira-dama dos EUA.
Também nesse período, surgiram os primeiros dissidentes. Negros acusavam o Templo de conceder privilégios hierárquicos aos adeptos brancos, e militantes de esquerda questionavam o real comprometimento do grupo com a causa socialista. Aos descontentamentos, somavam-se as denúncias de enriquecimento ilícito, assédio sexual, abuso psicológico e charlatanismo. Jones, por sua vez, desmoralizava os críticos e buscava novas formas de isolar os fiéis.
Em 1974, o reverendo travou uma série de negociações com as autoridades da Guiana. Tendo uma população majoritariamente negra, o inglês como língua oficial e um governo simpático ao socialismo, o país sul-americano despontava como o cenário perfeito para uma fuga do escrutínio que se delineava nos EUA.
Em junho daquele ano, membros da seita entraram na selva guianense e iniciaram a construção do Projeto Agrícola do Templo do Povo, mais conhecido como Jonestown. A empreitada deu origem a um boato: para escapar do governo americano, Jones estaria planejando um retorno ao Brasil.
Num sermão gravado em outubro de 1974, o reverendo, bastante irritado, respondeu às acusações: "Se estivéssemos fugindo, nós jamais iríamos ao Brasil, aquela ditadura militar fascista. Mas as pessoas não enxergam nem um palmo adiante, o que esperar desses imbecis?".
Nos anos seguintes, Jones dividiria sua rotina entre estadias na Guiana e excursões proselitistas aos EUA. No dia 7 de fevereiro de 1977, discursando em uma igreja lotada na Filadélfia, explicou à plateia os supostos objetivos de Jonestown: permitir aos fiéis que se refugiassem da guerra nuclear e das ditaduras. "Nós temos um Hitler no Brasil", opinou. "Um Hitler comandando o Brasil agora mesmo, o general Ernesto Geisel".
Cinco meses depois, o reverendo se mudou para a Guiana em caráter definitivo. Quase mil fiéis o acompanharam.
Paranoia
Embora o Templo do Povo anunciasse Jonestown como um paraíso terrestre, na prática o assentamento lembrava um campo de concentração.
Trabalho escravo, cárcere privado, racionamento de comida e sessões de tortura marcavam o dia a dia da comunidade. Moradores que desobedecessem às ordens de Jones eram submetidos a espancamentos, estupros corretivos e suturas sem anestesia. Às vezes, eram dopados à força e trancados numa caixa subterrânea, onde perdiam os sentidos.
Em muitas ocasiões, os fiéis também tinham que passar as noites em claro, discutindo intrigas da seita ou escutando pregações do reverendo. Nessas madrugadas insones, tomadas por um constante estado de alerta, as menções ao Brasil eram recorrentes, de acordo com os arquivos do grupo.
No dia 20 de maio de 1978, Jones discorreu brevemente sobre a atuação de guerrilheiros no Nordeste brasileiro. Três meses depois, em 25 de agosto, proferiu um longo discurso sobre as eleições que empossariam, por voto indireto, o general João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar brasileira. No dia 9 de setembro, durante uma explanação sobre a história do fascismo, citou Plínio Salgado e o movimento integralista. Em 31 de outubro, saudou as greves operárias que tomavam o ABC paulista.
Mas o medo do mundo externo se sobrepunha a todos os outros temas. Afundado em drogas e cada vez mais paranoico, o reverendo atravessou o ano de 1978 atormentado por uma ideia fixa: Jonestown estaria prestes a ser destruída por mercenários da extrema-direita americana. A única alternativa ao destino humilhante e doloroso que se abateria sobre o Templo do Povo estava, segundo o líder, na prática do "suicídio revolucionário".
Em 16 de fevereiro, um morador sugeriu que a comunidade deixasse a Guiana e tentasse uma fuga pela fronteira com o Brasil (o país sul-americano é fronteiriço aos Estados do Pará e de Roraima). Para Jones, a ideia não fazia sentido. "São cinco mil milhas na selva. Nós teremos que andar, andar, andar. Teremos que aprender com os índios, negociar e fazer amizade com eles, dividir o pouco que temos e permanecer longe do governo", retrucou. "Vocês precisam ter os pés no chão."
Massacre
As profecias do reverendo pareciam ter se concretizado quando Leo Ryan, deputado federal pelo Partido Democrata da Califórnia, anunciou uma visita à Guiana. Políticos, repórteres e ex-fiéis se uniram ao congressista numa comitiva destinada a checar o que se passava em Jonestown.
O grupo chegou ao assentamento agrícola numa sexta-feira, 17 de novembro, e foi recebido com uma festa de boas-vindas. Ryan, emocionado, disse ao microfone: "Ao conversar com vocês, percebi que esse lugar foi a melhor coisa que já aconteceu em suas vidas".
O veredicto foi calorosamente aplaudido. A comitiva, entretanto, logo percebeu que o clima de alegria era falso: na tarde de sábado, 16 moradores pediram a Ryan que os levasse de volta para os EUA.
Hostilizados pelo reverendo, os forasteiros e dissidentes partiram rumo à pista aérea de Port Kaituma, pequena vila a 10 quilômetros de Jonestown. Antes de embarcarem no avião que os aguardava, foram atingidos por uma rajada de balas.
Além do deputado Ryan, mais quatro pessoas morreram na emboscada: Don Harris, correspondente da NBC; Robert Brown, cinegrafista da mesma emissora; Greg Robinson, fotógrafo do San Francisco Examiner; e Patricia Parks, uma das moradoras que tentavam abandonar a comunidade.
Enquanto isso, no pavilhão central de Jonestown, o reverendo celebrava seu último culto. "Eles vão torturar nossas crianças aqui. Eles vão torturar nosso povo. Eles vão torturar nossos idosos", advertiu. E, dirigindo-se às enfermeiras da seita, disse: "Providenciem os medicamentos". Uma mistura de cianureto com refresco de uva foi distribuída aos fiéis.
Bebês, crianças e adolescentes morreram primeiro, envenenados pelos pais - Charles Garry Henderson, um recém-nascido de dois meses, foi a mais jovem vítima do massacre. Idosos perderam a vida logo depois, executados pelas enfermeiras - Amanda Poindexter, uma ex-empregada doméstica de 97 anos, foi a vítima mais velha. Em seguida, animais de estimação foram sacrificados. Os adultos sucumbiram por último, caminhando até o púlpito para ingerir a solução.
"Não se entreguem às lágrimas e à agonia", ordenou Jones aos seguidores, que choravam em pânico. "A morte é apenas uma viagem para outro plano. Estamos cometendo este ato de suicídio revolucionário em protesto contra um mundo desumano."
Quando o líder atirou contra a própria cabeça, já não havia mais nenhum discípulo vivo no local. A mulher do reverendo estava entre os mortos, assim como dois de seus filhos adotivos, Lew e Agnes Jones. O casal que se juntara à família em Belo Horizonte, Jack e Rheaviana Beam, também havia bebido do veneno.
A lista de falecidos incluía ainda Patty Cartmell, que coordenara as atividades do Templo durante a estadia de Jones no Brasil, e Maria Katsaris, que dias antes, numa conversa telefônica com o irmão, dissera ter visitado o país a serviço da seita. Aproximadamente 70% dos mortos eram negros.
Em meio aos cadáveres, investigadores do FBI encontrariam pelo menos três notas de suicídio. A mais conhecida delas, anônima, continha um apelo: "Reúnam todas as fitas, todos os escritos. A história deste movimento deve ser examinada com cuidado e compreendida em todas as suas incríveis dimensões". E finalizava: "As trevas caem sobre Jonestown em seu último dia na Terra".
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