sexta-feira, 29 de maio de 2020

'Sonhos confinados': pesquisa analisa o que brasileiros têm sonhado durante a pandemia


Relatos são colhidos pelas redes sociais. Segundo o professor Gilson Iannini, do Departamento de Psicologia da UFMG, eles refletem o contexto político e o avanço do coronavírus no país.

'Sonhos confinados': pesquisa analisa o que brasileiros têm sonhado durante a pandemia

“As pessoas costumam falar que o mundo está um pesadelo. Não é à toa que a gente usa esse termo”, afirmou o professor Gilson Iannini, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele é um dos responsáveis pela pesquisa "Sonhos confinados", que analisa o que os brasileiros têm sonhado durante a pandemia de coronavírus.

“As pessoas estão sonhando de uma maneira muito diferente. A nossa hipótese é que esse contexto todo que a gente está vivendo, tanto da pandemia, quanto dos impasses políticos e econômicos, geram uma exigência de trabalho psíquica intensa”, explicou.

A pesquisa é coordenada por profissionais da UFMG, da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Enquanto a USP e a UFRGS são focadas em relatos de profissionais da saúde e da educação, a UFMG analisa sonhos de qualquer pessoa, de qualquer idade ou profissão.

Quem quiser enviar o relato não precisa se identificar. Os sonhos são colhidos em um formulário on-line, disponível no Instagram do projeto. A pessoa deve descrever o sonho e as lembranças, associações e interpretações que fez dele. “Se a pessoa preferir, pode mandar áudio no WhatsApp para contar mais detalhes”, completou Iannini.

Cerca de 660 sonhos já foram narrados pelos brasileiros, 360 só na base de dados da UFMG. Na universidade mineira, mais de 10 pesquisadores da pós-graduação em psicologia participam do trabalho. O tratamento dos dados é feito com apoio de métodos computacionais de análise do discurso.

Sonhando mais?


Professor Gilson Iannini, do Departamento de Psicologia da UFMG — Foto: Gilson Iannini/Arquivo pessoal

“O sonho é uma máquina que elabora aquilo que, durante o dia, a consciência não deu conta de elaborar com as ferramentas limitadas que tem”, afirmou o pesquisador. Dados preliminares da pesquisa mostram que há diferença entre os sonhos do início da pandemia, em março, e os de agora.

“Antes, ao que tudo indica, eles eram mais associados ao isolamento, à solidão e à angústia ligados a isso. O termo que mais aparecia era ‘casa’. Agora, começaram a aparecer temas mais ligados à morte, principalmente nas cidades em que a pandemia chegou de uma maneira mais expressiva, como no Rio de Janeiro”, detalhou o professor.

De acordo com Iannini, a mudança na rotina, devido ao isolamento social, é uma das razões para estarmos nos lembrando mais do que sonhamos. Quando acordamos atrasados, acendemos a luz e lavamos o rosto, por exemplo, as sensações exteriores são mais fortes do que as do sonho. “É uma competição desleal, as experiências reais ocupam o psíquico de uma maneira mais forte. Se você acorda com mais tempo e fica mais tempo no escuro, a chance de se lembrar do sonho é bem maior”, comentou.

Fantasia e realidade


Uso de máscaras nas ruas de Belo Horizonte — Foto: Thaís Leocádio/G1

A pesquisa é principalmente inspirada em três livros: “A Interpretação dos Sonhos” e “O Infamiliar”, de Sigmund Freud; e “Sonhos no Terceiro Reich”, de Charlotte Beradt.

“Freud trata da impossibilidade de se sentir em casa, em casa. É fácil entender quando a há medo de um lugar desconhecido, mas a gente sente medo dentro de casa, como a criança que sente medo dentro do próprio quarto. Quando a gente estranha aquilo que é íntimo, temos o paradoxo a que Freud deu o nome de infamiliar”, explicou Iannini.

Já o trabalho de Beradt é importante para pensar a função coletiva que os sonhos têm. Em “Sonhos no Terceiro Reich”, a jornalista alemã compilou 300 relatos durante a ascensão do nazismo. “Eles frequentemente mostram como as pessoas começaram a perceber, nos sonhos, os perigos que só se deram conta conscientemente um tempo depois”, acrescentou.

Segundo o professor, como ainda estamos estranhando a nova realidade, temos dificuldade de processá-la. “É a sensação de estar dentro de um filme. É como se a gente perdesse as fronteiras nítidas da fantasia e da realidade, isso faz com que a nossa mente tenha que trabalhar mais pra dar conta de processar esses dados que são incongruentes”, finalizou o professor.

G1.

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